No ônibus para o trabalho, uma garotinha sentada à minha frente pedia para a mãe ler o que estava escrito no cartelete do projeto Leitura para Todos. A mãe, sem paciência, preferiu dormir a ler para a menina, que não se deu por vencida e ficou brincando com o cartaz mesmo assim.
Eu peguei meu livro – Jane Eyre, da Charlotte Bronte – e continuei minha leitura, enquanto ouvia as músicas que tinha colocado no iPod ontem. A menina do banco da frente se ajoelhou no assento e colocou a mãozinha sobre o meu livro, examinando as ilustrações da capa. Olhei para ela e ela riu um sorriso sapeca e sem dois dentes recém-caídos. Sorri de volta. Essa foi a senha de que ela precisava para começar o diálogo.
- Posso ver?
- O que você quer ver?, perguntei virando o interior do livro para ela.
- Quem é este? – ela me perguntou, apontando para uma ilustração
- Ele se chama Senhor Rochester.
- Posso ver seu livro?
Marquei a página que estava lendo e emprestei o livro para a menininha, que o folheou todo, muito interessada. Quando terminou de ver, me devolveu e voltei a conversar com ela. Se chama Talita, tem seis anos, gosta de brincar de boneca – sua preferida sendo a Júlia, que fala “Mamãe” e “papá” – e está no primeiro ano da escola, apesar de agora “estar de férias, né!” Ainda não sabe ler.
Talita ficou curiosa para saber o que eu estava ouvindo. Dei um lado do fone de ouvido para ela, que ouviu só uns quatro ou cinco acordes antes de exclamar um “Que lindo!”
- Ele se chama Louis Armstrong – expliquei vendo aquele sorrisinho faltando dentes.
Ela ficou encantada. Pegou o outro lado do fone de ouvido, que estava solto no meu pescoço, e colocou na orelha. Apreciou um pouco mais a música e me devolveu um lado do fone, para que eu pudesse ouvir aquela beleza também. Voltou a se sentar em seu banco, a Talita, com meu fone em seu ouvido. Não tive coragem de privá-la daquele prazer – até porque, um gosto por Louis Armstrong tem que ser incentivado – e fiquei sentada na beiradinha do meu banco, para que o fio do fone chegasse até ela.
Enquanto Talita ouvia música e fazia desenhos imaginários no vidro do ônibus, reparei que parecia ser uma menina pobrinha. Mulatinha, de olhos meio puxados, estava bem descabelada e com os cabelos sarará – como eu tinha quando era pequena! – presos sem cuidado em um coque no alto da cabeça. Imaginei que haviam sido presos com a mesma paciência com que a mãe lhe havia lido o cartaz do Leitura para Todos – nenhuma. As unhas tinham um resto de esmalte. Aliás, de dois esmaltes, um preto e outro vermelho. E também tinha uns machucadinhos pelo rosto. Senti uma vontade de colocar Talita no meu colo e apresentar a ela muitas outras coisas bonitas: pinturas, outras músicas, filmes, levá-la a uma orquestra.
Chegou o centro da cidade e a mãe de Talita se levantou para descer. Percebi que foi sofrido para ela se separar de Louis Armstrong, com aquele seu vozeirão bonito e seu trompete açucarado. Talita saiu correndo do banco no último momento, vendo que sua mãe já estava descendo do ônibus e ela ia ficando para trás. “Tchau, Talita!” – falei enquanto ela ia saindo. Pequenininha, se espremeu entre as pessoas em pé e pulou do ônibus que já ia começando a andar de novo.
Recoloquei os fones de ouvido, reabri o livro e ouvi lá de longe:
- TCHAU, RAQUEEELL!!!
Olhei para fora e vi Talita abanando a mãozinha lá da calçada, com seu sorriso incompleto. Segui o caminho sentindo amor por Talita. Torci para que ela ainda tenha outros contatos com Louis Armstrong, e também com Ella Fitzgerald, Cole Porter, Miles Davis e todos os outros bons músicos deste mundo. Desejei saber o que será de Talita daqui a 20 anos – e desejo, com toda a força, que ela tenha um futuro brilhante, que não perca o interesse pelos livros e que não deixe morrer esse gosto refinado que já tem. Talita hoje tornou meu dia muito mais bonito. Mas o que me deixa feliz de verdade é saber que pude retribuir isso a ela.