“Wondering how they met and what makes it last
If I found the place
Would I recognize the face?
Something's telling me it might be you
Yeah, it's telling me it might be you”
Ele vinha cantarolando a caminho de casa no domingo, já quase hora do almoço. Já estava na casa dos 70. Já não tinha mais a cabeleira que costumava usar. Na verdade, os poucos cabelos que restavam, na lateral e parte de trás da cabeça, estavam quase todos brancos. Também estava branca a barba, comprida. Continuava magro. E não abandonava a camisa xadrez de azul e branco, a calça jeans desbotada e o tênis.
Em uma mão, tinha uma sacola retornável e na outra segurava o celular. Era o celular que prendia sua atenção enquanto caminhava e cantava – bem afinadinho, apesar de não se esforçar para tal. Na telinha pequena, o envelopinho mostrava que havia recebido mensagem. Era ela, perguntando se ele já estava chegando com a batata palha e a gelatina sem sabor.
Cantarolando e respondendo à mensagem (“já saí da padaria. Por que, quer que volte para mais alguma coisa?”), pensou em quem estava em casa à espera. Ela, os três filhos – 35, 31 e 28, respectivamente – e os netos. Ele tinha netos! Três! Mas a caçula ainda morava em casa – “o dia que ela sair...”, pensou com uma pontinha de pesar. Será que eles já haviam chegado ou ela o estava apressando à toa?
Uma coisa leva à outra e ele se lembrou de coisas de mais de quarenta anos atrás. Ela não era a mais bonita. Nem a mais popular. Nem a família dela tinha dinheiro. Mas que inteligência! Que senso de humor! Que cabeça moderna para os anos ’50! Todas aquelas ideias sobre a igualdade entre os sexos, sobre a independência feminina, sobre vivermos do jeito que quisermos e não do jeito que esperam que vivamos. Era feminista, ora essa! E ele adorava. Nunca havia conhecido uma mulher tão decidida, tão confiante, tão divertida. Foi impossível não se apaixonar por tudo aquilo.
Também foi difícil aprender a conviver com tudo aquilo. Foi difícil aceitar que algumas tarefas da casa seriam dele; difícil aceitar que, sim, ela continuaria dando suas aulas; muito difícil aceitar ter tido que esperar até os 38 anos de idade para o primeiro filho, já que ela ainda queria terminar o mestrado antes de ser mãe. Mas cada aprendizado era um laço a mais que se atava entre os dois. Cada obstáculo vencido indicava que estavam fazendo um bom trabalho na empreitada que escolheram de ser uma família.
Ainda cantarolando, chegou em casa. O filho do meio já havia chegado com a esposa. A caçula – era a cópia da mãe! – terminava o livro em que estivera agarrada nos últimos dois dias. Ela – esposa, mãe, mulher, pessoa complexa mas de desejos simples – apareceu na porta da cozinha e olhou para ele por trás dos óculos com aquele ar apressado de sempre. “Traz a gelatina aqui, senão essa mousse não vai endurecer!”
Levou a sacola até a cozinha. Olhou em volta. Sentiu o cheiro da casa, das suas coisas, da sua vida. Reconheceu toda a sua história naqueles segundos. Provou um sentimento de pertença que não sabia o que era desde as lutas contra a ditadura na juventude. Olhou para ela e teve certeza, mais uma vez, de suas escolhas.
“Something’s telling me it might be you
Yeah, it’s telling me it might be you
All of my life”
3 comentários:
Muito, mas muito mesmo, bonito seu texto. Me emociono com essas histórias - sou meio chorão, não conta pra ninguém, tá!
E realmente melhorou minha segunda de não feriado! =)
Ieeeeyy!! Obrigada! :-D
A parte do senhor cantarolando a música é verdade. Toda a história da vida dele é fruto da minha imaginação, que ficou borbulhante com aquela figura cantarolando It Might Be You num domingo de manhã, tão absorto nos seus próprios pensamentos.
Kel, não conhecia seu blog e adorei ser apresentada a ele nesse texto lindo! Beijos
Postar um comentário